domingo

O começo

O Tempo e o Beijo
(uma fábula)

Fazia calor porque o sol precisava ver de perto. E o ventilador da sala tentava, em vão, refrescar nossa inquietude, enquanto a professora passarinho sussurrava Apuleio. Meu boné azul pairava de um lado a outro, entre os olhos de vagalume dela, às vezes, e os olhos de tocha dele, quase sempre. Então um bilhete despretencioso tornou-se o ingresso da nossa peça; nela a gente entrou ao sair. O intervalo antecipado consta nos anais da universidade como o mais longo de todos. Enquanto nosso lado mais supérfluo varria datas, nomes e geografias, nossas caldeiras ferviam. Até que deu-se o beijo na árvore. As formigas, agitadas, avisaram os cupins, as borboletas, os bem-te-vis. A natureza entrava em colapso. Aquele era o beijo mais bicho de que se tinha conhecimento, a vida voltava ao Gênesis, e nós éramos Adão e Isra ou Valter e Eva, não me lembro. Quando o beijo-ser pausou, um grande e alto galho desmembrou-se de seu tronco: nascia o amor.Desde então é esse o filme que mais passa na minha sessão. E toda vez que termina eu chovo. E toda vez que eu chovo venta. E quando venta um galho seco se quebra em mim e atrapalho a audiência. E então preciso voltar a bitola: fazia calor porque o sol precisava ver de perto.

(Naquele tempo, eram águas de março, verão, promessa, vida, coração.Agora é pau, pedra, o fim)

B.R., 17 de novembro de 2007. Quem sou eu sozinho?

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